sábado, 13 de fevereiro de 2016

A morte alada.Parte 1-Lovecraft


 O Orange Hotel fica na High Street, próximo à estação ferroviária, em Bloemfontein, na
África do Sul. Num domingo, a 24 de janeiro de 1932, quatro homens estremeciam de
terror num dos quartos em seu terceiro piso. Um deles era George C. Titteridge, proprietário do
hotel; outro era o guarda de polícia Ian De Witt, da Delegacia Central; o terceiro era Johannes
Bogaert, o juiz investigador local; o quarto, e aparentemente o menos perturbado do grupo, era o
doutor Cornelius Van Keulen, o médico legal.
Sobre o piso, incomodamente evidente em meio ao intenso calor do verão, jazia o corpo de um
homem morto; mas não era disso que os quatro tinham medo. Seus olhares vagavam da mesa,
sobre a qual havia uma curiosa mixórdia de coisas, para o teto logo acima, ao longo de cuja
suave brancura uma série de caracteres grandes e hesitantes tinham de algum modo sido
garranchados a tinta; e vez ou outra o doutor Van Keulen olhava furtivamente para um surrado
livro encapado em couro, para as palavras rabiscadas no teto e para uma mosca morta de aspecto
peculiar que flutuava numa garrafa de amônia sobre a mesa. Também sobre a mesa estavam um
tinteiro aberto, uma caneta e uma almofada para escrita, uma valise de médico, uma garrafa de
ácido clorídrico e um copo contendo um quarto de óxido de manganês preto.
O livro encapado em couro era o diário do morto e deixava claro que o nome Frederick N.
Mason, da Mining Properties, Toronto, Canadá, assinado no registro do hotel, era falso. Havia
outras coisas, coisas terríveis, que a partir dele se tornavam claras também; e ainda outras que
ele apenas sugeria de modo horrível, sem as deixar claras ou sequer torná-las inteiramente
críveis. Era a meia suspeita dos quatro homens, fecundada por vidas inteiras que passaram junto
aos segredos sombrios da África nativa, que os fazia tremer tão violentamente, a despeito do
calor causticante de janeiro.
Tratava-se de um caderno pequeno, e todas as entradas apareciam numa caligrafia bonita, a qual,
entretanto, se tornava descuidada e nervosa à medida que se aproximava do fim. Consistia de
uma série de apontamentos soltos, irregularmente espaçados no princípio, mas que finalmente se
tornavam cotidianos. Chamá-lo de diário não seria inteiramente correto, pois recobria a crônica
de apenas um setor das atividades do autor. O doutor Van Keulen reconheceu o nome do morto
no momento em que virou a capa, pois se tratava de um eminente membro de sua própria
profissão que tinha estado amplamente ligado aos assuntos africanos. Num outro momento, ficou
horrorizado ao descobrir seu nome ligado a um crime covarde não solucionado oficialmente, que
tinha freqüentado os jornais há uns quatro meses. E quanto mais lia mais se aprofundavam seu
horror, seu pasmo, sua aversão e seu pânico.
Aqui, em essência, está o texto que o doutor leu em voz alta naquele quarto sinistro e
perturbador, enquanto os três homens à sua volta perdiam o fôlego, se remexiam em suas
cadeiras e disparavam olhadelas medrosas para o teto, para a mesa, para as coisas que estavam
no chão, bem como entre si mesmos:
DIÁRIO DE THOMAS SLAUENWITE – MÉDICO
Comovente punição de Henry Sargent Moore, Ph.D., do Brooklyn, Nova Iorque, professor de
Biologia dos Invertebrados na Universidade de Colúmbia, Nova Iorque, N.Y. Preparada para ser
lida após minha morte, pela satisfação de tornar pública a realização de minha vingança, a qual,
de outro modo, poderá nunca vir a ser creditada a mim, caso obtenha sucesso.
5 de janeiro de 1929 – Estou agora plenamente resolvido a matar o doutor Henry Moore, e um
incidente recente me mostrou como o farei. Doravante, seguirei uma linha de ação consistente;
daí o começo deste diário.
Não há muita necessidade de repetir as circunstâncias que me levaram em tal direção, pois a
parte informada do público está familiarizada com todos os fatos relevantes. Nasci em Trenton,
Nova Jérsei, em 12 de abril de 1885, e sou filho do doutor Paul Slauenwite, que antes esteve em
Pretoria, no Transvaal, na África do Sul. Estudando medicina em consonância com uma tradição
familiar, fui conduzido por meu pai (que morreu em 1916, enquanto eu servia na França num
regimento sul-africano) a me especializar em febres africanas; e, após me formar pela Colúmbia,
dediquei bastante tempo a pesquisas que me levaram de Durban, em Natal, até o próprio
equador.
Em Mombaça, trabalhei em minha teoria sobre a transmissão e o desenvolvimento da febre
remitente, ajudado apenas em parte pelas anotações do último médico do governo, Sir Norman
Sloane, as quais encontrei na casa em que vivi. Quando publiquei minhas conclusões, tornei-me
de súbito uma autoridade famosa. Falaram-me acerca da probabilidade de uma posição quase
suprema no serviço de saúde sul-africano e até mesmo de uma comenda, na eventualidade de
que eu me tornasse cidadão naturalizado, e em função disso dei alguns passos indispensáveis.
Então sobreveio o incidente pelo qual estou prestes a matar Henry Moore. Esse homem, meu
colega de estudos e amigo durante anos na América e na África, deliberou minar minhas
pretensões quanto à teoria, alegando que Sir Norman Sloane me antecipara em todos os detalhes
essenciais e dando a entender que eu teria encontrado mais papéis dele do que declarara em
meus escritos. Para corroborar essa acusação absurda, ele trouxe à luz certas cartas pessoais de
Sir Norman que de fato mostravam que o velho já teria percorrido meu caminho e que publicaria
seus resultados, não fosse pela sua morte repentina. Tudo isso eu poderia admitir com alguma
mágoa. O que não podia desculpar era a suspeita invejosa de que havia roubado a teoria dos
papéis de Sir Norman. O governo inglês, sensível demais, ignorou essas difamações, mas retirou
a prometida indicação e a comenda, sob justificativa de que minha teoria, embora original em
parte, não era de fato nova.
Percebi que minha carreira na África fora bruscamente interrompida, não obstante tivesse
apostado todas as minhas esperanças nela, ao ponto mesmo de desistir da cidadania americana.
Uma frieza tocante em relação à minha pessoa se manifestou no governo de Mombaça,
principalmente entre os que tinham conhecido Sir Norman. Foi então que resolvi acertar contas
com Moore, mais cedo ou mais tarde, conquanto não fizesse idéia de como. Ele invejara minha
prematura celebridade e tirara partido de sua antiga correspondência com Sir Norman para me
arruinar. Tudo isso vindo de um amigo em quem eu mesmo suscitara o interesse pela África, a
quem orientara e inspirara, até que adquirisse sua fama atual como autoridade em entomologia
africana. Mesmo agora, decerto, não vou negar que suas conquistas tenham sido profundas. Eu o
ajudei, e em troca ele me arruinou. Agora, algum dia, o destruirei.
Quando vi que perdia espaço em Mombaça, solicitei uma transferência para o interior, para
M’gonga, onde permaneço atualmente, apenas a cinqüenta milhas da fronteira com Uganda.
Trata-se de um entreposto para comércio de algodão e marfim, com somente oito homens
brancos, além de mim. Um lugar bestial, quase na linha do equador, cheio de todo tipo de febres
que a humanidade já conheceu. Serpentes venenosas e insetos por toda parte, e negros portadores
de doenças de que ninguém ouve falar fora do ambiente médico. No entanto meu trabalho não é
difícil, e tenho tempo de sobra para pensar no que fazer com Henry Moore. Diverte-me dar aos
seus Dípteros da África Central e Meridional um lugar proeminente em minha estante. Suponho
que seja realmente um manual padrão, usado em Colúmbia, em Harvard e em Winsconsin,
porém minhas próprias sugestões é que são de fato responsáveis por metade de seus pontos
fortes.
Na semana passada encontrei aquilo que me decidiu sobre o modo de acabar com Moore. Um
grupo enviado de Uganda trouxe um negro acometido por uma doença que ainda não posso
diagnosticar. O homem parecia letárgico, com uma temperatura muito baixa, e se contorcia de
um modo peculiar. A maioria dos outros tinha medo dele, dizendo que estava sob algum tipo de
feitiçaria; no entanto Gobo, o intérprete, disse que ele fora picado por um inseto. Qual fosse, não
posso imaginar, pois há apenas uma ligeira ferroada no braço. É de um vermelho brilhante,
porém com uma auréola arroxeada ao redor. De aparência espectral, não me espanto de que os
rapazes a atribuam à magia negra. Parecem ter visto casos semelhantes em outros tempos e
dizem que, com efeito, não há nada a fazer.
O velho N’Kora, um dos nativos de Oromo a trabalhar no posto, sugere que possa ser a mordida
de uma mosca-diabo, que faz com que suas vítimas se esgotem e morram, para então tomar
posse de sua alma e de sua personalidade, se esta ainda estiver viva, voando por aí com todos os
seus gostos, aversões e com sua consciência. Uma curiosa lenda, e não sei de inseto mortal o
suficiente com o qual relacioná-la. Dei a esse negro doente (cujo nome é Mevana) uma boa dose
de quinino e extraí uma amostra de seu sangue para exame, mas não obtive progresso. Existirá,
certamente, algum germe estranho envolvido, mas não posso identificá-lo sequer remotamente.
A coisa mais próxima é o bacilo que se encontra em bois, cavalos e cachorros picados pela tsétsé;
porém moscas tsé-tsé não infectam seres humanos, e estamos muito ao norte para encontrálas
por aqui.
Entretanto o importante é que me decidi sobre como matar Moore. Se esta região interior tem
insetos tão venenosos como os nativos afirmam, providenciarei para que receba um suprimento
deles de uma fonte insuspeita, e com muitas garantias de que são inofensivos. Certo de que ele
negligenciará toda cautela quanto ao estudo de uma espécie desconhecida, e então veremos
como a natureza segue seu curso! Não será difícil achar um inseto que tanto amedronta os
negros. Primeiro, observar o que acontece ao pobre Mevana, e então encontrar meus próprios
emissários mortais.
7 de janeiro – Mevana não melhorou, embora eu lhe tenha aplicado todas as antitoxinas que
conheço. Tem acessos de tremor, nos quais o ouvimos arengar medrosamente sobre o modo
como sua alma passará, quando ele morrer, para o inseto que o picou; mas entre os acessos
permanece numa espécie de semiestupor. Pulsação cardíaca ainda forte, de modo que poderei
ajudá-lo. Tentarei, pois ele provavelmente pode me guiar melhor do que qualquer outro até a
região onde foi picado.
Enquanto isso, escreverei ao doutor Lincoln, meu antecessor por aqui, pois Allen, o
administrador chefe, diz que ele tinha um profundo conhecimento das doenças locais. Ele deverá
saber sobre a mosca-diabo, se é que algum branco sabe. Está em Nairobi atualmente, e um mensageiro negro deverá me trazer uma resposta dentro de uma semana, usando a ferrovia para a
metade do trajeto.
10 de janeiro – Paciente estável, mas encontrei o que queria! Foi num antigo volume dos
registros locais de saúde que eu tinha estado a percorrer com diligência enquanto esperava por
notícias de Lincoln. Trinta anos atrás teria ocorrido uma epidemia que matou milhares de nativos
em Uganda, e fora definitivamente atribuída a uma rara mosca chamada Glossina palpalis, um
tipo de primo da Glossina norsitans ou tsé-tsé. Vive nos arbustos às margens de lagos e rios e se
alimenta do sangue de crocodilos, antílopes e grandes mamíferos. Quando esses animais portam
o germe da tripanossomíase, ou doença-do-sono, ela o adquire, desenvolvendo agudo poder de
infecção num período de trinta e um dias. Então, durante setenta e cinco dias, passa a representar
morte certa para qualquer um ou qualquer coisa que venha a picar.
Sem dúvida, essa deve ser a mosca-diabo de que falam os negros. Agora sei o que estou
buscando. Espero que Mevana se levante. Devo receber notícias de Lincoln em quatro ou cinco
dias; é grande a sua reputação em lidar com coisas desse tipo. Meu problema maior será passar
as moscas a Moore sem que ele as reconheça. Com sua maldita aplicação acadêmica, não seria
difícil que ele já as conhecesse desde que houvesse registros a respeito.


Final da parte 1


Creditos a:Site Lovecraft que disponibilizou o PDF

Tradução:Renato Suttana

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