sábado, 13 de fevereiro de 2016

A morte alado.Final-Lovecraft


Parte final:
19 de janeiro – Estou completamente engolfado no horror. A coisa me tocou. Qualquer coisa de
monstruosa e demoníaca está em andamento à minha volta, e eu não sou senão uma vítima
indefesa. Pela manhã, quando voltei do desjejum, aquele demônio alado do inferno se precipitou
para dentro do quarto, voando sobre minha cabeça, e começou a martelar contra a proteção da
janela, tal como o fizera ontem. Desta vez, porém cada série de batidas continha apenas quatro
pancadas. Corri à janela e tentei capturá-la, mas ela me escapou, como de costume, e voou para o
tratado de Moore, sobre o qual esvoaçou com escárnio. Seu aparelhamento vocal é limitado, mas
notei que seus zumbidos se produziam em grupos de quatro.
Mas desta vez eu estava louco, com certeza, pois gritei: “Moore, Moore, pelo amor de Deus, o
que você quer?” Quando o fiz, a criatura parou subitamente de circular, voou em minha direção
e fez um profundo, gracioso mergulho no ar, semelhante a um aceno sugestivo. Pelo menos,
pareceu-me ter visto isso, conquanto eu já não confie mais em meus sentidos.
E então o pior aconteceu. Eu deixara minha porta aberta, na esperança de que o monstro saísse,
se eu não o pegasse, mas por volta das 11h30 a fechei, concluindo que ele se fora. Então me
acomodei para ler. Logo ao meio-dia senti um prurido em minha nuca, mas quando levei a mão
não havia nada. Num instante senti cócegas outra vez e, antes que pudesse me mover, aquele
fruto inominável do inferno apareceu em meu campo de visão, executou outro daqueles
mergulhos zombeteiros e graciosos no ar, e fugiu através do buraco da fechadura, que eu nunca
imaginei fosse largo o bastante para a sua passagem.
De que a coisa tinha me tocado eu não podia duvidar. Tocara-me sem me injuriar. E, então,
lembrei-me com um súbito arrepio gelado de que Moore tinha sido picado na parte de trás do
pescoço, ao meio-dia. Nenhuma invasão desde então, mas já tratei de vedar com papel todos os
buracos das fechaduras e manterei um maço de papel enrolado pronto para uso a qualquer
momento em que saia ou que entre.
20 de janeiro – Não posso ainda crer inteiramente no sobrenatural, entretanto não sinto menos
que estou perdido. A questão é demais para mim. Pouco antes do meio-dia de hoje aquele
demônio apareceu do lado de fora da janela e repetiu sua operação de bater, mas desta vez em
séries de três. Quando fui à janela, ele desapareceu. Ainda tenho resolução bastante para tomar
uma última medida defensiva. Removendo ambos os mosquiteiros, lambuzei-os com meu
preparado de visgo, o mesmo que usei no tinteiro, por dentro e por fora, e os recoloquei no lugar.
Se aquela criatura tentar bater de novo, há de ser pela última vez!
O resto do dia em paz. Posso resistir a esta experiência sem me tornar um maníaco?
21 de janeiro – A bordo do trem para Bloemfontein.
Estou destroçado. A coisa me vence. Possui uma inteligência diabólica contra a qual todos os
meus recursos são inoperantes. Apareceu do lado de fora da janela nesta manhã, mas não tocouna tela visguenta. Antes, passou rente, sem a tocar, e se pôs a zumbir em círculos – dois por vez,
seguidos de uma parada no ar. Depois de várias dessas operações, sumiu de vista por sobre os
telhados da cidade. Meus nervos estão a ponto de se partir, pois essas sugestões de números são
passíveis de uma horrenda interpretação. Na segunda-feira, a coisa se demorou na imagem do
cinco; na terça foi o quatro; na quarta foi o três; e agora, hoje, é o dois. Cinco, quatro, três, dois
– que mais pode ser senão uma monstruosa e inconcebível contagem de dias? E com que
propósito apenas os poderes malignos do universo poderão dizer! Passei toda a tarde embalando
e arrumando meus pertences, e agora tomei o expresso noturno para Bloemfontein. A fuga pode
ser inútil, mas o que mais se pode fazer?
22 de janeiro – Hospedado no Orange Hotel, em Bloemfontein, um lugar confortável e
excelente, mas o horror me seguiu. Fechei todas as portas e as janelas, entupi todos os buracos
de fechaduras, investiguei cada pequena frincha, e corri todas as venezianas; mas, pouco antes
do meio-dia, ouvi um estalido curto contra um dos mosquiteiros. Esperei – e, depois de uma
longa pausa, outro estalido ocorreu. Uma segunda pausa, e mais um estalido. Erguendo a
veneziana, avistei a maldita mosca, conforme esperara. Ela descreveu um círculo aberto e lento
no ar, e então desapareceu de vista. Senti-me exaurido como um farrapo e tive de me apoiar no
sofá. Um! Esse era claramente o conteúdo da verdadeira mensagem do monstro. Uma batida, um
círculo. Significaria para mim mais um único dia, antes de algum destino impensável? Eu
deveria escapar de novo ou me entrincheirar aqui, fechando hermeticamente todo o quarto?
Depois de uma hora de repouso, senti-me capaz de agir e mandei que me trouxessem um grande
provimento de comida enlatada e embalada, e também roupas de mesa e de banho. Amanhã não
abrirei, em qualquer circunstância, nenhuma fenda de janela ou de porta. Quando trouxe as
toalhas e os lençóis, o negro olhou-me com estranheza, mas não me importa parecer excêntrico
agora ou sequer insano. Tenho sido perseguido por forças muito piores que os ridículos dos
homens. Ao receber as encomendas, vasculhei cada milímetro quadrado das paredes e vedei
mesmo cada abertura microscópica que pude encontrar. Por fim, senti-me em condições de
dormir um pouco.
(A caligrafia aqui se torna irregular, nervosa e muito difícil de decifrar.)
23 de janeiro – Já é quase meio-dia, e sinto que alguma coisa horrível está para acontecer. Não
dormi tanto quanto esperava, mesmo não tendo dormido nada no trem na noite anterior.
Levantei-me cedo, com dificuldades de me concentrar no que quer que fosse, seja a leitura ou a
escrita. Essa contagem lenta e deliberada dos dias é demais para mim. Não sei qual delas
enlouqueceu, se a natureza ou se minha cabeça. Até por volta das onze nada fiz senão andar pelo
quarto.
Então ouvi um rumor por entre os fardos de alimentos trazidos ontem, e aquela mosca
demoníaca se arrastou para fora diante de meus olhos. Agarrei qualquer coisa plana e tentei
atingir a coisa, a despeito de meu pânico, mas com o mesmo resultado de sempre. Enquanto eu
avançava, aquele horror de asas azuis se retirou, como de costume, para a mesa onde eu
empilhara meus livros, e dardejou por um minuto sobre os Dípteros da África Central e
Meridional. Então, como eu insistisse, voou em direção ao relógio da cornija e pousou sobre o
número 12. Antes que eu pensasse em qualquer movimento, começou a girar sobre o mostrador
com lentidão deliberada, seguindo na direção dos ponteiros. Passou sob o ponteiro dos minutos,
abaixou-se, ergueu-se, passou sob o ponteiro das horas, e finalmente parou bem em cima do 12.
Enquanto permaneceu aí, agitou as asas com um forte zumbido.
Será algum portento desconhecido? Estou ficando tão supersticioso quanto os negros. São agora
pouco mais de onze horas. Às doze horas será o fim? Restou-me um último recurso, que me veioà mente em meio ao mais extremo desespero. Lembrando-me de que minha valise de
medicamentos contém ambas as substâncias necessárias para produzir gás clorídrico, tomei a
decisão de encher o quarto com esse vapor letal, asfixiando a mosca, enquanto me protejo com
um lenço embebido em amônia, que amarrarei sobre o rosto. Por sorte, tenho uma boa reserva de
amônia. Essa máscara improvisada provavelmente neutralizará as emanações do ácido clorídrico
até que o inseto esteja morto ou, pelo menos, indefeso o bastante para ser esmagado. Mas preciso
ser rápido. Como posso ter certeza de que o bicho não disparará contra mim antes que eu termine
os preparativos? Eu nem deveria me interromper para escrever este diário.
Mais tarde – Ambas as substâncias – ácido clorídrico e dióxido de manganês – sobre a mesa,
prontas para misturar. Amarrei o lenço sobre o nariz e a boca e tenho uma garrafa de amônia
para mantê-lo encharcado até que o gás clorídrico se dissipe. Fechei ambas as janelas. Mas não
me agradam as ações do demônio híbrido. Permanece no relógio, mas se arrasta lentamente do
número 12 em direção ao ponteiro dos minutos, que não pára.
Será esta minha última anotação no diário? Seria inútil tentar negar minhas suspeitas.
Freqüentemente um grão de verdade bruxuleia por trás das lendas mais fantásticas e selvagens.
Trata-se da personalidade de Henry Moore, que tenta me pegar por meio desse demônio de asas
azuis? É esta a mosca que o picou e que, em conseqüência, lhe absorveu a personalidade quando
ele morreu? Se o for, e se ela me picar, minha própria personalidade substituirá a de Moore,
entrando naquele corpo zunidor quando eu mesmo morrer picado em seguida? Talvez, contudo,
eu não morra necessariamente se ela me pegar. Sempre existe uma chance com a triparsamida. E
eu não me arrependo de nada. Moore tinha de morrer, quaisquer que fossem as conseqüências.
(Pouco mais tarde)
A mosca parou sobre o mostrador do relógio próximo à marca dos 45 minutos. São agora 11h30.
Estou saturando o lenço com amônia que apliquei sobre o rosto e mantenho a garrafa à mão para
novas aplicações. Esta será a última anotação antes que eu misture o ácido e o manganês para
liberar o gás clorídrico. Eu não deveria estar perdendo tempo, mas me aflige a necessidade de
colocar tudo no papel. Mas, quanto a este relato, eu já terei perdido minha razão há muito tempo.
A mosca parece estar se tornando impaciente, e o ponteiro de minutos se aproxima dela. Agora,
ao gás clorídrico...
(Fim do diário)
No domingo, dia 24 de janeiro de 1932, após repetidas pancadas na porta do excêntrico ocupante
do quarto 203 do Orange Hotel, que não obtiveram resposta, o camareiro negro entrou, usando a
chave de reserva, e logo disparou aos gritos pela escada abaixo, a fim de informar o funcionário
sobre o que tinha encontrado. O funcionário, após notificar a polícia, chamou o gerente, e este
último acompanhou o guarda De Witt, o juiz Bogaert e o doutor Van Keulen até o quarto
fatídico.
O ocupante jazia morto sobre o soalho, de face para cima, envolta num lenço que cheirava a
amônia. Sobre essa proteção, suas feições exibiam uma expressão de medo extremado, que se
transmitiu aos observadores. No dorso do pescoço o doutor Van Keulen descobriu a mordida de
algum inseto virulento (vermelha escura, com uma auréola roxa ao redor), que sugeria a tsé-tsé
ou qualquer coisa menos inócua. Um exame indicou que a morte deveria ter sido causada mais
por parada cardíaca, resultante de pânico, do que pela mordida, conquanto uma autópsia
posterior mostrou que o germe da tripanossomíase fora introduzido no organismo.
Sobre a mesa havia diversos objetos: um velho caderno de notas encapado em couro, contendo o
diário, conforme descrito, uma caneta, um bloco de anotações, um tinteiro aberto, uma valise de
medicamentos com as iniciais T. S. gravadas em ouro, frascos de amônia e de ácido clorídrico, e
um copo contendo mais ou menos um quarto de dióxido de manganês escuro. A garrafa de
amônia exigiu uma segunda olhada, pois que parecia haver nela alguma coisa a mais além do
fluido. Examinando de perto, o investigador Bogaert percebeu que o estranho ocupante era uma
mosca.
Parecia tratar-se de algum híbrido com vagas filiações da tsé-tsé, mas as asas, exibindo um
pálido azul, a despeito da ação forte da amônia, eram completamente intrigantes. Alguma coisa
nela trouxe ao doutor Van Keulen a vaga recordação de uma notícia lida em jornal, recordação
que o diário logo confirmaria. Suas partes inferiores pareciam ter sido manchadas com tinta, tão
intensamente que nem a amônia as empalidecera. Provavelmente teria caído no tinteiro alguma
vez, embora as asas parecessem intactas. Mas como teria penetrado através do gargalo estreito
da garrafa de amônia? Era como se a criatura tivesse entrado deliberadamente para cometer
suicídio!
Mas o mais estranho foi o que o guarda De Witt descobriu no forro do teto, enquanto seus olhos
vagueavam pelo cômodo com curiosidade. Ao seu grito, os outros três seguiram seu olhar, até
mesmo o doutor Van Keulen, que permanecera por um instante a tamborilar os dedos na capa de
couro do livro, com uma expressão que misturava horror, fascínio e incredulidade. O que havia
no teto era uma série de trêmulos e erradios traços feitos a tinta, tais como se produzidos pelo
arrastar-se de algum inseto encharcado. Imediatamente todos pensaram nas manchas da mosca
que estava na garrafa de amônia.
Mas esses não eram traços ordinários. Mesmo num primeiro relance se percebia neles alguma
coisa de assombrosamente familiar, e uma inspeção mais atenta fez os quatro observadores
engasgarem de espanto. O juiz Bogaert instintivamente procurou no quarto por algum
instrumento ou empilhamento de mobília que indicassem terem sido aquelas manchas hesitantes
produzidas por um agente humano. Nada encontrando, retornou seu olhar espantado e
aterrorizado para o alto.
Fora de qualquer dúvida, aquelas manchas de tinta formavam letras específicas do alfabeto,
letras coerentemente arranjadas na forma de palavras em inglês. O médico foi o primeiro a
distingui-las com clareza, e os outros perderam o fôlego ouvindo-o recitar a mensagem de teor
insano que fora, de modo tão incrível, rabiscada num lugar onde nenhuma mão humana
alcançaria:
“VEJAM MEU DIÁRIO – ELA ME PEGOU PRIMEIRO – MORRI – ENTÃO PERCEBI QUE
ESTAVA NELA – OS NEGROS ESTÃO CERTOS – ESTRANHAS FORÇAS NA
NATUREZA – AGORA AFOGAREI O QUE SOBROU”
Logo em seguida, em meio ao silêncio de perplexidade que sobreveio, o doutor Van Keulen
começou a ler em voz alta o diário de capa surrada.


Fim

Creditos a:Site Lovecraft que disponibilizou o PDF

Tradução:Renato Suttana

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