sábado, 13 de fevereiro de 2016

A morte alada.Parte 2-Lovecraft

Parte 2:

15 de janeiro – Acabo de receber notícias de Lincoln, que confirma tudo o que os registros
dizem acerca da Glossina palpalis. Ele dispõe de um remédio para a doença-do-sono que obteve
sucesso num grande número de casos, desde que ministrado em tempo. Injeções intramusculares
contra a infecção. Uma vez que Mevana foi picado há dois meses, não sei que efeito terá; mas
Lincoln diz que sabe de casos que se arrastaram por dezoito meses, de modo que eu talvez não
esteja tão atrasado. Lincoln enviou um pouco do material, e me apressei a dar a Mevana uma
dose reforçada. Em estupor agora. Trouxeram da aldeia a sua primeira esposa, mas ele sequer a
reconhece. Caso se recupere, certamente poderá mostrar-me o lugar onde estão as moscas. É um
grande caçador de crocodilos, segundo informações, e conhece Uganda com a palma da mão.
Vou lhe dar outra injeção amanhã.
16 de janeiro – Mevana parece hoje um pouco mais vívido, mas sua pulsação tem se atrasado um
pouco. Manterei as injeções, mas evitarei sobrecargas.
17 de Janeiro – Melhoras realmente notáveis, hoje. Mevana abriu os olhos e mostrou sinais de
efetiva consciência, embora ofuscada, após a injeção. Espero que Moore nada saiba sobre a
triparsamida. Há boas chances de que não saiba, desde que nunca se dedicou à medicina. A
língua de Mevana parece paralisada, mas creio que isso se corrigirá se eu ao menos conseguir
despertá-lo. Até que apreciaria um bom sono eu mesmo, mas não dessa natureza!
25 de janeiro – Mevana quase curado! Com mais uma semana, e poderei fazer com que me leve
até a selva. Estava amedrontado quando chegou, com medo de que a mosca tomasse sua
personalidade depois da morte; mas finalmente se animou, quando lhe contei que ficaria bom.
Sua esposa, Ugowe, cuida bem dele agora, de modo que posso descansar um pouco. Então, aos
enviados da morte!
3 de fevereiro – Mevana está bem agora, e conversei com ele a respeito de caçar moscas. Ele
teme aproximar-se do lugar onde elas o picaram, mas estou jogando com sua gratidão. No mais,
ele supõe que posso tanto afastar doenças quanto curá-las. Sua coragem envergonharia um
homem branco; não há dúvida de que ele irá. Posso me ausentar, dizendo ao administrador chefe
que será uma viagem a serviço dos interesses sanitários.
12 de março – Em Uganda, finalmente! Tenho cinco rapazes, além de Mevana, mas são todos de
Oromo. Não houve como contratar os negros locais, nem convencê-los a se aproximarem da
região, depois do que aconteceu com Mevana. Esta selva é um lugar pestilento, fumegante de
vapores miasmáticos. Todos os lagos parecem estagnados. Em certo ponto, descobrimos traços
de ruínas ciclópicas que fizeram mesmo os oromenses recuar num círculo aberto. Dizem que
esses megálitos são mais antigos que o próprio homem e que costumavam servir como abrigo ou
posto avançado dos “Pescadores de Fora” – o que quer que isso signifique – e dos deuses
malignos Tsathoggwa e Cthulhu. Hoje em dia, diz-se que tenham uma influência malévola e que,
de algum modo, estejam conectados com as moscas-diabo.
15 de março – Atingimos o lago Mlolo nesta manhã, onde Mevana foi picado. Uma coisa
diabólica, coberta por uma crosta verte e repleta de crocodilos. Mevana armou uma pequena
arapuca para moscas, feita de arame, usando carne de crocodilo como isca. Possui uma abertura
estreita, e uma vez que algum aventureiro penetre não terá condições de sair. São tão estúpidas
quanto mortais, e loucas por carne fresca ou uma tigela de sangue. Espero que obtenhamos um
bom suprimento. Decidi que preciso fazer experiências com elas, encontrando um modo de
alterar sua aparência a um extremo que Moore não as reconheça. Possivelmente poderei cruzálas
com outras espécies, obtendo um híbrido estranho cuja capacidade de infecção não será
diminuída. Veremos. Preciso esperar, mas agora não tenho pressa. Quando estiver pronto, farei
com que Mevana me traga um pouco de carne infectada para alimentar meus enviados da morte.
E, então, ao correio. Não deve haver problemas em captar a infecção, pois este país é um
verdadeiro ninho de pestes.
16 de março – Sorte. Duas gaiolas cheias. Cinco vigorosos espécimes com asas que cintilam
como diamantes. Mevana os está guardando num grande pote com uma tampa segura, e penso
que os apanhamos a tempo. Poderemos levá-los a M’gonga sem dificuldades. Estocando carne
de crocodilo suficiente para alimentá-los. Sem dúvida, toda ela ou a maior parte se acha
infectada.
20 de abril – De volta a M’gonga e a trabalhar no laboratório. Solicitei ao doutor Joost, em
Pretória, algumas tsé-tsés para experimentos de hibridização. Tal cruzamento, se funcionar,
deverá produzir qualquer coisa bem difícil de reconhecer e, ao mesmo tempo, tão mortal quanto
as palpalis. Se não der certo, tentarei com outros dípteros do interior, e já mandei pedir ao doutor
Vandervelde, em Nyangwe, alguns tipos do Congo. Não terei que mandar Mevana em busca de
mais carne corrompida, pois creio que posso manter, por tempo indefinido, culturas em tubo do
germe Trypanossoma gambiense, retirado da carne que conseguimos no mês passado. Quando
chegar a hora, corromperei alguma carne fresca e alimentarei meus arautos alados com uma boa
dose. Então, bon voyage para eles!
18 de junho – Minhas tsé-tsés enviadas por Joost chegaram hoje. Gaiolas para criação já estavam
prontas há muito, e agora estou fazendo seleções. Pretendo usar raios ultravioletas para acelerar
o ciclo vital. Por sorte, disponho do aparato necessário no meu equipamento regular.
Naturalmente, não digo a ninguém o que estou fazendo. A ignorância dos poucos homens daqui
torna fácil esconder minhas intenções e fingir que estudo espécies existentes com propósitos
científicos.
29 de junho – O cruzamento é fértil! Grandes depósitos de ovos na última quarta-feira, e agora
tenho larvas excelentes. Se os insetos maduros parecem tão estranhos quanto elas, nada mais
preciso fazer. Preparando gaiolas separadas e numeradas para os diferentes espécimes.
7 de julho – Novos híbridos se formaram! O disfarce é excelente quanto à forma, mas o lustro
das asas sugere a palpalis. O tórax possui ligeiras sugestões das listras da tsé-tsé. Discretas
variações entre os indivíduos. Tenho-as alimentado com carne corrompida de crocodilo, e depois
que a infecciosidade se desenvolver vamos testá-las em alguns dos negros, com ares, é claro, de
acidente. Há tantas moscas moderadamente venenosas por aqui que se pode fazer isso com
facilidade e sem despertar suspeitas. Libertarei um inseto em minha sala de jantar
hermeticamente protegida, quando Batta, meu camareiro, trouxer o café da manhã, mantendo-me
em guarda eu mesmo. Quando ela fizer seu trabalho, vou capturá-la ou esmagá-la – uma tarefa
simples, devido à conhecida estupidez – ou asfixiá-la enchendo o cômodo de gás clorídrico. Se
não der certo da primeira vez, tentarei de novo até que dê. Decerto, terei à mão a triparsamida,
para o caso de ser picado – mas tomarei cuidado para não o ser, pois nenhum remédio é
garantido.
10 de agosto – Infecciosidade amadurecida, e providenciei para que Batta fosse picado de jeito.
Apanhei a mosca sobre sua pele, devolvendo-a à gaiola. Amenizei a dor com iodo, e o pobre
diabo ainda ficou grato pelo serviço. Esses serão os únicos testes que ousarei fazer por aqui. No
entanto, se precisar de outros, levarei alguns espécimes até Ukala e obterei dados adicionais.
11 de agosto – Falhei com Gamba, mas recapturei a mosca viva. Batta ainda parece bem, como
de costume, e não sente dor nas costas onde foi picado. Esperarei, antes de tentar em Gamba
outra vez.
14 de agosto – Remessa de insetos por Vandervelde, finalmente. Sete espécies claramente
distintas, algumas mais ou menos venenosas. Mantenho-as bem alimentadas para o caso de o
cruzamento com a tsé-tsé não funcionar. Algumas delas parecem bem diferentes da palpalis, mas
o problema é que podem não produzir um cruzamento fértil com ela.
17 de agosto – Atingi Gamba hoje, mas tive de matar a mosca que pousou sobre ele. Ela o
mordeu no ombro esquerdo. Tratei a picada, e Gamba ficou tão agradecido quanto Batta.
Nenhuma alteração em Batta.
20 de agosto – Gamba ainda inalterado, e Batta também. Tenho experimentado com uma nova
forma de disfarce para suplementar a hibridização – um tipo de tintura para mudar o brilho
denunciador das asas da palpalis. Um matiz azulado seria bom, algo que eu pudesse borrifar
sobre todo um enxame de insetos. Iniciarei investigando coisas como o azul-da-prússia e o azulmarinho,
sais de ferro e cianogênio.
25 de agosto – Batta se queixou de uma dor nas costas hoje. As coisas podem estar em
andamento.
3 de setembro – Obtive razoável progresso em meus experimentos. Batta exibe sinais de letargia
e diz que suas costas doem o tempo todo. Gamba começa a sentir desconforto no ombro
mordido.
24 de setembro – Batta piorando mais e mais e começando a se amedrontar por causa da picada.
Acha que pode ser uma mosca-diabo e me implorou que a matasse, pois me viu colocá-la na
gaiola, até que aleguei que ela já tinha morrido há muito. Disse-me que não pretendia que sua
alma passasse para ela após sua morte. Dou-lhe injeções de água pura com uma seringa para
manter seu moral. Evidentemente a mosca conserva todas as propriedades da palpalis. Gamba
abatido também, e repetindo todos os sintomas de Batta. Posso decidir-me e lhe dar uma chance
com a triparsamida, para o caso de a mosca provar sua eficiência. No entanto deixarei que Batta
prossiga, pois quero ter uma idéia aproximada de quanto tempo um caso leva para terminar.
Experimentos com tintura revelando-se profícuos. Uma forma isomérica de ferro-ciano pode ser
dissolvida em álcool e borrifada sobre os insetos com um efeito esplêndido. Ela mancha de azul
as asas sem afetar muito o tórax escuro e não se apaga quando abluo os espécimes com água.
Com esse disfarce, penso que poderei usar os híbridos atuais da tsé-tsé, sem me incomodar com
outros experimentos. Por mais sagaz, Moore não poderia reconhecer uma mosca de asas
azuladas com um meio tórax de tsé-tsé. Naturalmente, mantenho todo esse assunto de tingimento
sob segredo. Mais tarde, nada deverá me ligar às moscas azuis.
9 de outubro – Batta caiu em letargia e se recolheu ao leito. Tenho ministrado triparsamida em
Gamba por duas semanas e suponho que se recobrará.
25 de outubro – Batta muito por baixo, mas Gamba praticamente bem.
18 de novembro – Batta morreu ontem, e uma coisinha aconteceu que me deu um grande
estremecimento, em vista das lendas nativas e dos receios do próprio Batta. Quando retornei ao
laboratório depois de sua morte, ouvi um zumbido e um bulício singulares na gaiola 12, onde
estava a mosca que picara Batta. A criatura parecia frenética, mas se aquietou quando apareci,
brilhando sobre a grade de arame e olhando para mim de um modo estranhíssimo. Lançava as
patas sobre os olhos, como se estivesse desnorteada. Quando voltei, após ter jantado com Allen,
a coisa estava morta. Evidentemente teria enlouquecido e morrido de tanto se chocar contra a
gaiola.
Certamente é peculiar que isso tenha ocorrido logo que Batta morreu. Se algum negro o tivesse
visto, teria creditado o fato à absorção da alma do pobre diabo. Dentro de pouco tempo colocarei
meus híbridos azulados a caminho. O poder de morte dos híbridos parece um pouco maior do
que o da palpalis pura, suponho. Batta morreu três meses e oito dias após a infecção – mas,
naturalmente, há sempre uma larga margem de incerteza. Quase desejaria ter deixado o caso de
Gamba prosseguir.
5 de dezembro – Ocupado em planejar o modo como enviarei meus arautos a Moore. Preciso
fazer com que pareça terem vindo de algum entomologista desinteressado, o qual teria lido os
seus Dípteros da África Central e Meridional e acreditaria que ele se interessasse em estudar
esta “espécie nova e não identificada”. Deverá haver também amplas garantias de que a mosca
de asas azuis seja inofensiva, como o prova a longa experiência dos nativos. Moore baixará a
guarda, e uma das moscas certamente o pegará mais cedo ou mais tarde, embora não se possa
dizer quando.
Terei de confiar nas cartas de amigos de Nova Iorque (ainda falam de Moore, de tempos em
tempos) para me manter informado acerca dos últimos resultados, embora eu ouse dizer que os
jornais anunciarão sua morte. Sobretudo, preciso mostrar agora interesse em seu caso. Enviarei
as moscas durante uma viagem, mas não devo ser reconhecido quando o fizer. O melhor plano
será tirar umas longas férias no interior, deixar a barba crescer, postar a encomenda em Ukala,
passando por lá como um entomologista visitante, e retornar para aqui depois de raspar a barba.
12 de abril de 1930 – De volta a M’gonga depois de minha longa viagem. Tudo correu da melhor
maneira, com precisão de relógio. Enviei as moscas a Moore sem deixar rastros. Tirei férias
natalinas, em 15 de dezembro, e parti de imediato com o material preparado. Providenciei uma
excelente embalagem para correio, com espaço bastante para incluir alguma carne de crocodilo
contaminada, para a alimentação dos enviados. Até o fim de fevereiro, já tinha barba bastante
para me passar por um perfeito Van Dyke.
Apareci em Ukala, a 19 de março, e datilografei uma carta para Moore na máquina do entreposto
comercial. Assinei como “Nevil Wayland-Hall”, suposto entomologista de Londres. Penso ter
conseguido o tom certo: interesse de parceiro cientista e tudo o mais. Fui artisticamente casual
ao enfatizar a “total ausência de periculosidade” dos espécimes. Ninguém suspeitou de nada.
Barbeei-me assim que cheguei ao mato, de modo que não se notasse nenhuma irregularidade
quando estivesse de volta. Prescindi de carregadores nativos, exceto num pequeno trecho
pantanoso. Sou capaz de prodígios com uma simples mochila, e meu senso de direção é bom.
Por sorte, estou acostumado a tais viagens. Expliquei minha ausência prolongada, alegando uma
ponta de febre e alguns erros de direção enquanto atravessava o mato.
Mas agora vem, psicologicamente, a pior parte – esperar notícias de Moore sem demonstrar
ansiedade. Naturalmente, ele pode muito bem escapar às picadas até que o veneno se esgote; mas
com o seu estouvamento as chances são de uma para cem contra ele. Não me arrependo de nada.
Depois do que me fez, ele merece isso e muito mais.
30 de junho de 1930 – Ufa! O primeiro passo foi dado! Acabo de ouvir casualmente de Dyson,
da Columbia, que Moore recebeu da África algumas moscas novas, de asas azuis, e que está
absolutamente intrigado com elas! Nenhuma palavra sobre picadas; mas, se conheço o jeito
relaxado de Moore, como penso conhecer, não tardará a acontecer alguma coisa.
27 de agosto de 1930 – Carta de Morton, de Cambridge. Diz que Moore escreveu sobre sentir-se
abatido e fala de uma picada de inseto na parte de trás do pescoço – de um curioso espécime
novo que recebeu por meados de junho. Terei tido sucesso? Aparentemente Moore não conecta a
mordida com sua fraqueza. Se a coisa for de verdade, então Moore foi picado bem dentro do
período de infecciosidade dos insetos.
12 de setembro de 1930 – Vitória! Outra linha de Dyson diz que Moore se acha num estado
alarmante. Ele agora relaciona sua doença com a picada, que recebeu no entardecer de 19 de
junho, e está completamente confuso quanto à identidade do inseto. Tem tentado obter contato
com o tal “Nevil Wayland-Hall”, que lhe mandou a encomenda. Das cem que lhe enviei, cerca
de vinte e cinco parecem ter chegado vivas. Algumas escaparam ao prazo para a mordida, mas
várias larvas surgiram de ovos colocados desde o dia da postagem. Ele está, Dyson diz,
encubando cuidadosamente essas larvas. Quando amadurecerem, suponho que identificará a
hibridização da tsé-tsé palpalis, mas isso de pouco lhe servirá. No entanto se perguntará por que
as asas azuis não se transmitem por hereditariedade!
8 de novembro de 1930 – Cartas de meia dúzia de amigos falam da séria enfermidade de Moore.
A de Dyson chegou hoje. Diz que Moore está absolutamente desnorteado sobre os híbridos que
surgiram das larvas e começou a pensar que os pais obtiveram suas asas azuis por algum
processo artificial. Passa a maior parte do tempo na cama agora. Nenhuma menção ao uso de
triparsamida.
13 de fevereiro de 1931 – Contratempos! Moore afunda e parece não conhecer nenhum remédio,
mas creio que suspeita de um. Recebi uma carta bastante animada de Morton, no mês passado,
que não mencionava Moore; e agora Dyson escreve, algo constrangido, que Moore está
elaborando teorias sobre o assunto. Tem procurado “Wayland-Hall”, por meio do telégrafo, em
Londres, Ukala, Nairobi, Mombaça e outros lugares; e, naturalmente, nada encontra. Julgo que
terá aventado com Dyson acerca do suspeito, mas que Dyson ainda não acredita. Temo que
Morton acredite.
Vejo que o melhor é traçar planos para fugir daqui e camuflar minha identidade. Que fim para
uma carreira que se iniciou tão bem! Mais um trabalho de Moore; mas agora está pagando porele adiantado! Creio que retornarei à África do Sul. E, enquanto isso, tratarei discretamente de
depositar algum fundo lá a crédito de meu novo eu, “Frederick Nasmyth Mason, de Toronto,
Canadá, agente de minerações”. Estabelecerei uma nova assinatura, para identificação. Se nunca
tiver de dar esse passo, poderei facilmente transferir de volta os fundos para minha identidade
atual.
Final da parte 2




Creditos a:Site Lovecraft que disponibilizou o PDF

Tradução:Renato Suttana

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