sábado, 13 de fevereiro de 2016

A morte alada.Parte 3-Lovecraft

Parte 3:

15 de agosto de 1931 – Meio ano já, e ainda o suspense. Dyson e Morton, bem como vários
outros amigos, parecem ter parado de me escrever. O doutor James, de São Francisco, recebe vez
por outra notícias dos amigos de Moore e diz que Moore se acha num quase contínuo estado de
coma. Não tem podido andar desde maio. Enquanto conseguia falar, queixava-se de frio. Agora
não consegue falar, embora se pense que ainda tenha relances de consciência. Sua respiração é
rápida e curta e pode ser ouvida à distância. Nenhuma questão além do Trypanossoma
gambiense lhe interessa agora; mas ele resiste melhor do que os negros por aqui. Três meses e
oito dias acabaram com Batta, e aqui está Moore, vivo, mais de um ano após ter sido picado.
Ouvi rumores, no mês passado, sobre uma intensa busca por “Wayland-Hall” nos arredores de
Ukala. No entanto não acho que haja necessidade de me preocupar, pois não existe
absolutamente nada que me ligue a esse negócio.
7 de outubro de 1931 – Acabou-se, finalmente! Notícias na Mombasa Gazette. Moore morreu a
20 de setembro, depois de vários acessos de tremor e com uma temperatura largamente abaixo
do normal. E foi tudo! Eu disse que o pegaria, e o fiz! O jornal traz um relato de três colunas
acerca de sua doença e morte, e sobre a improfícua busca por “Wayland-Hall”. Obviamente,
Moore era na África um personagem maior do que pensei. O inseto que o picou foi agora
identificado adequadamente, a partir dos espécimes sobreviventes e das larvas desenvolvidas, e a
tintura das asas também foi detectada. Notou-se, de modo geral, que as moscas teriam sido
preparadas e enviadas com o intuito de matar. Moore, ao que parece, comunicou certas suspeitas
a Dyson, mas este último, junto com a polícia, tem mantido segredo, devido à ausência de
provas. Todos os inimigos de Moore têm sido observados, e a Associated Press aventa que “uma
investigação, possivelmente envolvendo um médico eminente que se acha exterior, se seguirá”.
Uma coisa bem no finalzinho da notícia (sem dúvida a invenção romanesca de algum jornalista
menor) me trouxe um curioso estremecimento, em vista das lendas dos negros e do modo como
as moscas se tornaram indóceis quando Batta morreu. Parece que um incidente estranho teve
lugar na noite em que Moore morreu. Dyson foi despertado pelo zunido de uma mosca de asas
azuis, a qual imediatamente voou pela janela, logo antes de a enfermeira telefonar dando notícias
da casa de Moore, milhas distante, no Brooklyn.
Mas o que mais me diz respeito é o final africano do caso. Pessoas em Ukala se lembram do
estrangeiro barbado que datilografou a carta e mandou o pacote, e os investigadores estão
varrendo o país em busca de quaisquer negros que o tenham ajudado. Não empreguei muitos,
mas se os oficiais questionarem os nativos que me conduziram através do cinturão da selva
N’Kini, terei de explicar mais do que pretendo. Ao que parece, chegou a hora de desaparecer.
Portanto, amanhã creio que pedirei demissão e me prepararei para viajar a algum lugar
desconhecido.
9 de novembro de 1931 – Trabalho duro para manejar minha demissão, mas a liberação veio
hoje. Não quis agravar suspeitas arribando imediatamente. Na semana passada ouvi de James
alguma coisa sobre a morte de Moore, mas não mais do que viera nos jornais. As pessoas de seu
círculo em Nova York se mostram bastante reticentes quanto aos detalhes, embora todos falem
de uma investigação. Nenhuma palavra de meus amigos do Leste. Moore deve ter semeado
suspeitas perigosas ao seu redor antes de perder a consciência, mas não existe a menor prova que
ele pudesse ter aduzido.
Mesmo assim, não quero correr riscos. Na quinta-feira partirei para Mombaça e uma vez lá
tomarei um vapor até Durban, descendo pela costa. Depois disso sumirei de vista. Porém logo
em seguida o agente de minerações Frederick Nasmyth Mason, de Toronto, aparecerá em
Johannesburg.
Seja este o final de meu diário. Se no fim eu não estiver sob suspeita, servirá ao seu propósito
original, após minha morte, e revelará o que de outro modo não seria conhecido. Se, por outro
lado, tais suspeitas se materializarem e persistirem, confirmará e clarificará as acusações vagas,
preenchendo importantes e desconcertantes lacunas. Naturalmente, se o perigo me ameaçar, terei
de destruí-lo.
Bem, Moore está morto, como muito bem merecia estar. Agora o doutor Thomas Slauenwite está
morto também. E quando o corpo que pertenceu a Thomas Slauenwite estiver morto, o público
poderá conhecer este relato.
15 de Janeiro de 1932 – Um novo ano, e uma relutante reabertura deste diário. Desta vez estou
escrevendo unicamente para aliviar meu espírito, pois seria absurdo imaginar que o caso não
esteja definitivamente encerrado. Instalei-me no Hotel Vaal, em Johannesburg, sob meu novo
nome, e ninguém até agora duvidou de minha identidade. Tive algumas conversas inconclusivas
sobre negócios, para reforçar meu papel como agente de mineração, e creio que possa até entrar
nesse ramo. Mais tarde irei a Toronto e semearei algumas evidências acerca de meu passado
fictício.
Mas o que me preocupa foi um inseto que invadiu meu quarto por volta do meio-dia de hoje. Por
certo tenho tido toda sorte de pesadelos com moscas azuis ultimamente, mas esses eram
previsíveis em vista de minha permanente tensão nervosa. Esta coisa, porém, era uma verdade da
vigília, e estou completamente desorientado a seu respeito. Zumbiu em torno de minha estante
por um bom quarto de hora e se esquivou a qualquer tentativa de capturá-la ou de matá-la. A
coisa mais inusitada era a sua cor e o seu aspecto, pois tinha asas azuis e era, sob todos os títulos,
uma duplicata de meus enviados híbridos da morte. Se poderia ser de fato um deles não tenho a
menor idéia. Tive controle sobre todos os híbridos – manchados e não manchados – que não
enviei a Moore, e não posso me lembrar de nenhuma evasão.
Seria isso uma completa alucinação? Ou algum dos espécimes que escaparam no Brooklyn
quando Moore foi picado poderia ter achado seu caminho de volta para a África? Houve aquela
história absurda da mosca que despertou Dyson quando Moore morreu. Mas, afinal, a
sobrevivência e o retorno de alguns dos bichos não são de todo impossíveis. É perfeitamente
possível que o azul tenha aderido às asas, pois o pigmento que apliquei era tão permanente
quanto a tatuagem. Por eliminação, essa pareceria ser a única explicação racional para a coisa,
conquanto seja bastante curioso que o bicho tenha chegado a tal extremidade no sul.
Possivelmente se tratará de algum instinto inerente ao ramo das tsé-tsés. Afinal, essa parte do
grupo pertence à África do Sul.
Preciso me precaver contra picadas. Naturalmente o veneno original (se esta for realmente uma
das moscas que escaparam de Moore) se esvaiu eras atrás; mas o exemplar deve ter se
alimentado quando retornou da América e pode muito bem ter vindo através da África Central,
readquirindo a infecciosidade. Com efeito, é mais provável do que improvável. Para a palpalis
metade de sua hereditariedade a levaria de volta a Uganda e a todos os germes da
tripanossomíase. Ainda tenho um pouco de triparsamida – não suportaria destruir minha caixa deremédios, por mais incriminadora que seja – mas, desde que comecei a ler sobre o assunto, já
não estou mais tão seguro da ação da droga quanto estive no começo. A mesma concede ao
indivíduo uma oportunidade de lutar, e certamente salvou Gamba, mas sempre resta uma imensa
probabilidade de fracasso.
É diabolicamente estranho que essa mosca tenha entrado bem em meu quarto, de todos os
lugares da imensa extensão africana! Parece conduzir ao extremo uma coincidência. Suponho
que, se retornar, eu certamente a matarei. Estou surpreso de que me tenha escapado hoje, pois
ordinariamente esses tipos são bastante estúpidos e fáceis de apanhar. Seria uma pura ilusão,
afinal de contas? Certamente o calor está me afetando nestes últimos tempos, como nunca o fez
antes, mesmo lá em Uganda.
16 de janeiro – Estarei enlouquecendo? A mosca retornou nesta tarde e agiu de um modo
anormal, que me pareceu sem pés nem cabeça. Somente uma ilusão de minha parte poderia
explicar o que aquela peste zunidora parecia estar fazendo. Surgiu de lugar nenhum e foi direto
para minha estante, fazendo círculos e círculos diante de uma cópia dos Dípteros da África
Central e Meridional, de Moore. De vez em quando, coruscava em cima ou atrás do volume,
mas no final dardejava em direção a mim e se retirava antes que eu pudesse atingi-la com algum
papel dobrado. Nunca se ouviu falar de semelhante esperteza com relação aos dípteros
notoriamente estúpidos da África. Por quase meia hora tentei acertar a maldita, mas por fim ela
disparou janela a fora, através de um buraco no mosquiteiro que eu não havia notado. Por vezes
imaginei que estivesse a zombar de mim, entrando no alcance de minha arma e então, com muita
destreza, se esquivando quando eu a atacava. Preciso ter mais controle sobre minha consciência.
17 de Janeiro – Ou eu estou louco ou o mundo foi vítima de uma súbita suspensão das leis da
probabilidade, conforme as conhecemos. A mosca infame surgiu de algum lugar logo antes do
meio-dia e começou a zumbir em torno da cópia dos Dípteros de Moore que está em minha
estante. Outra vez tentei apanhá-la, e outra vez a experiência de ontem se repetiu. Finalmente a
peste disparou em direção a um tinteiro sobre minha mesa e enfiou nele as patas e o tórax,
mantendo limpas as asas. Então voou até o teto e pousou, começando a rastejar e deixando um
rastro de tinta. Após algum tempo estremeceu um pouco e fez uma única mancha de tinta,
desconectada do rastro. Por último desceu direto até meu rosto e, finalmente, zumbindo, sumiu
de vista antes que eu pudesse pegá-la.
Alguma coisa em tudo isso me soou sinistramente monstruosa e anormal, e muito mais do que eu
poderia explicar a mim mesmo. Olhado sob diferentes ângulos, o rastro de tinta no teto pareceume
cada vez mais familiar, e de repente me ocorreu que formava um ponto de interrogação
absolutamente perfeito. Que maligno truque poderia ser mais apropriado? Espanto-me de não ter
desmaiado. No entanto os ajudantes do hotel não o notaram. Não viram a mosca nesta tarde e
neste anoitecer, mas estou mantendo meu tinteiro bem fechado. Penso que o extermínio de
Moore esteja me perseguindo e me proporcionando mórbidas alucinações. Talvez não haja
mosca nenhuma.
18 de janeiro – Em que estranho inferno de pesadelo vivo estarei mergulhado? O que ocorreu
hoje é algo que não poderia acontecer normalmente; e, no entanto, um empregado do hotel viu as
marcas no teto e admite sua realidade. Por volta das onze da manhã, quando eu trabalhava num
manuscrito, alguma coisa se atirou para dentro do tinteiro pela fração de um segundo e
relampejou para o alto outra vez, antes que eu pudesse ver o que era. Erguendo os olhos, vi no
teto aquela mosca infernal, como tinha visto antes, a rastejar e a traçar uma nova trilha de curvas
e volteios. Não havia nada que eu pudesse fazer, mas enrolei um jornal na expectativa de atingir
a criatura caso ela se aproximasse o bastante. Depois de ter feito várias voltas no teto, voou paraum canto escuro e desapareceu. E quando olhei de novo para o emboço desfigurado notei que a
nova trilha de tinta compunha a enorme e inequívoca imagem do algarismo 5.
Por um tempo fiquei quase inconsciente diante de uma onda de inominável ameaça da qual não
me dava conta totalmente. Então convoquei toda a minha resolução e tomei uma atitude. Fui até
uma loja de materiais químicos e comprei resina e outras coisas necessárias à preparação de uma
armadilha pegajosa, e também um tinteiro similar. Retornando ao quarto, enchi o tinteiro com a
mistura viscosa e o coloquei aberto no ponto onde estivera o original. Em seguida tentei me
concentrar em alguma leitura. Por volta das três horas ouvi de novo o maldito inseto e o vi
circulando em torno do tinteiro. Desceu até a superfície viscosa, mas não a tocou; e logo após
avançou em minha direção, recuando antes que eu o atingisse. Então foi até à estante e circulou
em torno do tratado de Moore. Há alguma coisa de profunda e diabólica no modo como o intruso
esvoaça perto desse livro.
A pior parte foi a última. Abandonando o livro de Moore, o inseto voou em direção à janela e
começou a se chocar ritmadamente contra a tela de arame. Ouvia-se uma série de batidas e então
uma série de igual extensão e depois uma pausa e assim por diante. Alguma coisa nessa
performance me manteve paralisado por alguns instantes, mas logo em seguida disparei para a
janela e tentei matar aquele bicho nocivo. Como sempre, nenhum resultado. Ele simplesmente
voou através do cômodo em direção a uma lâmpada e começou a bater no mesmo ritmo contra o
quebra-luz de cartão. Senti um vago desespero e tratei de fechar todas as portas, bem como a
janela em cuja tela havia o buraco imperceptível. Pareceu-me bastante necessário matar essa
criatura persistente, cujo assédio em breve teria perturbado minha cabeça. Então, contando
inconscientemente, comecei a notar que cada série de batidas continha exatos cinco toques.
Cinco – o mesmo número que a coisa tinha traçado a tinta no teto pela manhã! Podia-se conceber
alguma conexão? A idéia era maníaca, pois fazia supor um intelecto humano e um conhecimento
de escrita por parte da mosca híbrida. Um intelecto humano – não se estaria com isso recuando
às mais primitivas lendas dos negros ugandenses? E ainda havia aquela esperteza infernal em
ludibriar-me, que contrastava com a estupidez normal da espécie. Quando pus de parte meu
jornal dobrado e me sentei, tomado de crescente horror, o inseto esvoaçou zumbindo e
desapareceu através de um buraco do teto, por onde o cano do aquecimento subia para o quarto
de cima.
A partida não me acalmou, pois minha mente havia disparado numa cadeia de reflexões
frenéticas e terríveis. Se essa mosca tivesse uma inteligência humana, de onde viera tal
inteligência? Haveria alguma verdade na concepção nativa de que essas criaturas adquiriam a
personalidade de suas vítimas após a morte destas últimas? Em caso afirmativo, qual
personalidade essa mosca incorporara? Imaginei que fosse uma das que tinham escapado a
Moore na época em que fora picado. Seria este o enviado da morte que picara Moore? Se o era,
o que queria comigo? O que queria comigo, afinal de contas? Suando frio, lembrei-me das
ações da mosca que tinha picado Batta quando Batta morreu. Teria sido sua personalidade
substituída por aquela de sua vítima morta? Então havia também aquele relato sensacional da
mosca que despertou Dyson quando Moore morreu. Quanto à mosca que me assediava, poderia
ocorrer que uma personalidade humana vingativa a estivesse guiando? Como esvoaçava em
torno do livro de Moore! Recusei-me a pensar mais além disso. Subitamente comecei a ter
certeza de que a criatura estava de fato infectada e do modo mais virulento. Com deliberação
maligna, bastante evidente em cada ato seu, teria certamente se carregado de propósito com os
bacilos mais mortais de toda a África. Minha mente, completamente abalada, estava agora
levando em conta as qualidades humanas da criatura.
Telefonei de imediato para o gerente e pedi que um homem viesse fechar a abertura do cano do
radiador e outras possíveis fendas do meu quarto. Falei de estar sendo atormentado por moscas,
ao que ele me pareceu inteiramente solícito. Quando o homem veio, mostrei-lhe as marcas de
tinta no teto, que ele reconheceu sem dificuldade. Então são reais! A semelhança com um ponto
de interrogação e um número cinco o intrigaram e o fascinaram. Por fim, ele bloqueou todos os
buracos que conseguiu encontrar e remendou o mosquiteiro da janela. Evidentemente me julgou
um tanto excêntrico, até porque nenhum inseto apareceu enquanto ele esteve aqui. Mas estou
longe de me incomodar com isso. Até agora a mosca não apareceu por esta noite. Só Deus sabe o
que ela é, o que ela quer, e o que será de mim!

Final da parte 3


Creditos a:Site Lovecraft que disponibilizou o PDF

Tradução:Renato Suttana

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