quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Prato extra




Meu avô morreu faz duas semanas. Depois do funeral, nossa família se sentou pela sala da casa dele e conversamos sobre boas lembranças que tínhamos com ele. Todos os netos comentaram como ele fazia vozes diferentes quando estava lendo histórias, mesmo que fosse uma matéria no jornal. Conversamos sobre algumas destas histórias.



Meu avô nasceu na Polônia em 1929. Ele tinha 14 anos quando sua família foi capturados e levados para Birkenau pelos nazistas.


Ele nunca contou para nós, seus netos, como era no campo de concentração. Nunca o forçamos, também. Pelo que sei, ele teve duas irmãs mais novas e um irmão mais novo, também três irmãs mais velhas e dois irmãos mais velhos. Os três mais novos foram mortos assim que chegaram ao campo. Durante a estadia a família se despedaçou. Ele nunca mais viu ambas as irmãs mais velhas, que morreram depois de poucas semanas lá dentro. Sua mãe também morreu pouco tempo depois de chegar lá.


Meu avô e o que sobrou de sua família foram liberados em 1945 quando ele tinha 16 anos. Ele sofreu de estresse pós-traumático severo pelo resto de sua vida. Conheceu minha avó quando tinha vinte e poucos anos enquanto se mudavam para os Estados Unidos e logo se casaram e começaram a formar uma família.


Meu avô parecia ser um cara bem normal. Nunca ficou gagá, nem mesmo em seus últimos anos. Quando já estava na casa dos 60, não sofria mais do estresse, e com isso me refiro que ele não acordava mais no meio da noite gritando, ou tinha pânico de espaços pequenos, e não entrava mais em estado catatônico quando via uma bandeira do Nazismo. Ele foi o homem mais forte que conheci, tanto mentalmente quando emocionalmente.


Entretanto, havia uma coisa que ele fazia que sempre me pareceu muito estranho. Toda vez que comíamos juntos, ele servia um prato a mais. Mesmo em restaurantes, ele pedia dois pratos. Mas nunca comia a comida do outro prato, e nunca deixava ninguém comer dali.


Lembro de que quando era pequeno vivia perguntando sobre aquilo, e ele respondia sempre a mesma coisa para qualquer um: “Uma tradição antiga da Polônia”. Eu acreditei nisso até que ingressei na faculdade e comecei a ler sobre meus antepassados e toda a cultura polonesa. Eu lembrava bem do que meu avô dizia, mas quando fiz uma extensa pesquisa a respeito, não encontrei nada sobre a tal tradição.


Então, estávamos junto conversando sobre as memórias de meu avô, e decidi que era um bom momento para tentar entender o que era aquilo que fazia. Comentei sobre, todos começaram a discutir e indagamos nossa avó se ela sabia o porquê.


Ela hesitou por um momento, mas então decidiu falar.


“Birkenau era um lugar muito violento. Eles nunca tinham roupa o suficiente para se proteger dos invernos severos. Todos adoeciam. Todos tinham piolhos. Se avô era um homem muito esparto, o pai dele serviu na primeira Guerra mundial e ensinou aos meninos tudo que pode sobre sobrevivência em ambientes ariscos. Os prisioneiros recebiam quase nada de comida. Seu avô teve a ideia de fazer um pacto com uma menina da sua idade e para que a cada dia, eles revezassem a vez de comer a comida que recebiam, então, ao invés de todos os dias não comerem o suficiente, mesmo que isso fizesse uma diferença muito sutil em sua fome, pelo menos eles estariam com mais forças em um dia enquanto o outro passava a vez.


Isso funcionou por um tempo, mas quanto mais permaneciam lá, mais doente ficavam. Eventualmente a garota contraiu Tifu. Ficou muito debilitada. Ele ficou cego pela fome. Dizia que já havia a alimentado, mas nunca tinha. Ele mantinha a comida só para ele. Ela estava doente demais para compreender o que estava acontecendo em sua volta. Ela morreu e poucos dias depois os detentos foram liberados dos campos.”


Ficamos lá, sentados e incrédulos até que ela voltasse a falar.


“Depois que o campo foi liberado, ele não podia contar para ninguém o que tinha feito. Ficou tão envergonhado. Ele tentou viver normalmente, mas ele não era mais normal. Uma vez ele desabou e me contou que toda vez que sentava para comer, ouvia-a chorando. Foi assim que começou. Eventualmente ele a via, sentada na mesa com ele.


Achei que era só o trauma se manifestando, mas então comecei a vê-la também. Ela sentava na ponta daquela mesa ali,” ela apontou para a mesa de janta, “ela nunca falava, só chorava. Nunca conseguíamos comer lá sem ela se manifestar. Eventualmente a casa começou a cheirar a morte e doença, o tempo todo. Um frio absoluto tomou conta da casa, mesmo no verão. Achávamos animais mortos dentro da casa, com marcas de mordida. Aquilo tinha que parar. Então um dia, Abraham teve a ideia de servir um prato para ela. Tudo começou a melhorar a cada dia que ele servia comida a ela. Cada refeição, e cada lanche que fizesse. Eventualmente a casa parou de feder, o frio sumiu, e os animais pararam de aparecer. Também paramos de vê-la. Na verdade, nunca mais a vimos.”


Nenhum de nós sabia o que falar. Nosso avô tinha sido um homem muito cético. Nem em Deus ele acreditava. Todos nós concordamos que aquilo era uma ilusão do estresse pós-traumático que ele estava sofrendo e minha vó decidiu compartilhar de sua dor e loucura.


Claro, isso até que ouvimos o choro.


Créditos a Creepypasta Brasil
Autor: shiloh667

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